sem título II

A técnica, em sua essência abstrata, pode ser produzida como técnica de abstração. Já a essência abstrata da técnica apresenta-se praticamente verdadeira quando o trabalho é descoberto pela economia moderna sob a representação, que o fixaria “a objetos, a objetivos, ou mesmo fontes em particular” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 395), ou seja, ela se torna a técnica do trabalho como atividade de produção em geral, sem distinção. A concepção do trabalho abstrato subentende, necessariamente, a técnica intrínseca à produção social como igualmente abstrata. Para além de qualquer objeto e objetivo específico, ela diz respeito a um saber e a um fazer não determinados. O termo – ao menos como utilizado nesta pesquisa – expressa a articulação entre saber e fazer: compreendido como saber-fazer. O fazer supõe a mudança do estado dado para o produzido/modificado; o saber, por outro lado, demanda a repetição de estados, cuja recorrência deve efetuar-se entre instantes ou pontos distintos. Logo, o saber, que informa o fazer, acarreta a limitação das modificações infinitamente possíveis ao fazer, em cada instante ou ponto, onde o ato permanece condicionado pelo saber. O saber­fazer é a técnica como poder de reiterar uma ação – ou mesmo registros e seus encadeamentos. Por fim, a técnica voltada para as abstrações consiste em saber repetir o fazer que produz e opera as abstrações, que põe em relação elementos heterogêneos, assim como dá “uma existência, uma eficiência, uma potência de autoafirmação ontológica” a essas montagens (GUATTARI, 1992, p. 47).

Em outras palavras, o termo “técnica abstrata” indica a essência abstrata de toda técnica; sendo abstrata, a técnica se apresenta também instrumental ao trabalho de abstração. A abstração é técnica por envolver a repetição de uma prática, e a prática é abstrata porque repete o procedimento de abstração. Embora produza a dissolução do objeto determinado, o que repete é o saber que, como saber, não é aplicável além dos limites do que pôde saber. Se a técnica de abstração permanece limitada ou relativamente restrita, são limites referentes ao saber, que, ao ser praticamente reiterado, impõe a medida do mecanismo à produção. É o saber em geral que se mostra como habilidade automatizada, incorporada, intuída, repetida e adquirida. E o aprendizado das ações de abstrair, criar, relacionar níveis heterogêneos, remanejar componentes, demanda a repetição ou o exercício da abstração, da criação. Enfim, se a abstração se refere à mathesis, ela só pode ter existência processual ao envolver certa askesis que a coloca em operação.

A diferença entre a repetição direcionada à reprodução social e aquela sugerida pelo habitus científico está no meio de contenção do fazer, ou seja, da produção. Na primeira, esta antiprodução ocorre por um sistema simbólico de representação, uma codificação como lei, ao passo que, na segunda, o modus operandi abstrato tem por limite a constituição material imanente ao processo de apreensão. São condições materiais que se apresentam no campo, assim como no próprio estado do saber constituído, mais ou menos adequado à tarefa que se dispõe a realizar, que delimitam a prática abstrata. A composição dos corpos em Spinoza, a maestria sobre as emoções na Antiguidade, a compreensão dos fenômenos sociais pelo pesquisador é regulada a partir de uma economia de fluxos descodificados e não obedece à lei transcendente como fundamento de crença social ou consenso de grupo. É pela injunção internalizada da lei na representação simbólica que as disputas sociais são deflagradas na concorrência pelo poder simbólico de ordenar, normatizar, determinar.

Ambas as práticas se sustentam por meio da operação técnica que, sendo abstrata e subjetiva, desconhece objetos ou objetivos e pode servir a usos opostos. Existe a técnica que garante a reprodução da ordem simbólica, aprendida pela incorporação de regras, valores, práticas requeridas na formação de laços, disputas e investimentos sociais. Existe, por outro lado, a técnica que promove a dissolução dos códigos, a abstração das representações, o pensamento diagramático, o cálculo, o dissenso analítico necessário à ciência, à criação, à articulação de elementos heterogêneos. Técnica que, por natureza, mantém a reiteração, sem a qual o processo sofreria uma parada ou decorreria na continuação no vazio. Porém, diferente da anterior, a repetição opera em sentido contrário, desarticulando os códigos e os processos instaurados pelas técnicas simbólicas de reprodução. Pelo mesmo princípio geral de reiteração, a primeira reafirma representações, as crenças, os vínculos e as práticas constituídas; a segunda, o processo que expõe a dinâmica da materialidade sob os sistemas de representação – que, de outro modo, conectariam esta materialidade a objetos, objetivos determinados, ou fontes específicas.

Por fim, quanto à abertura ou rigidez nas configurações técnicas, ou seja, a estabilidade do saber que condiciona as características do fazer, bastaria observar que a técnica, sendo abstrata, é produzida nas relações e é componente material na rede. Sua operação particular depende das disposições do campo no qual está inserida. Se o sistema simbólico de representação é capaz de obter certa retenção da dinâmica social, ao impor sobre o fazer a constância de um modelo idealizado ou transcendente de saber, será este estado que conduzirá à relativa invariabilidade do mecanismo técnico. A representação simbólica, resistente às mudanças do campo de forças, condiciona o fazer às necessidades de preservação de determinada ordem ou produção social nas formações gregárias.